Na profusão de projeções nos quais alguns meios de comunicação, articulistas e analistas, são mais escancaradamente grossos e outros mais requintados, e diz um amigo que estes são os mais perigosos e atrasados, e não os primeiros, a vitalidade e perspectivas de uma estrutura social não são analisadas a partir do lugar que ocupa, ou do papel que cumpre, dentro da crise geral do sistema imperante e globalmente dominantes.
Por Pietro Alarcón - de São Paulo
Comumente a primeira visão da pessoa que procura se informar sobre os acontecimentos em Cuba provêm das matérias jornalísticas. Entretanto, aprendemos que o jornalismo não reflete a realidade, senão que também ajuda a construi-la. Daí que deva ser prestada atenção aos tempos da reportagem e a sua linguagem. A funcional sutileza na forma de comunicar alguns fatos por parte dos chamados grandes meios de comunicação nem sempre acompanha a pretendida “objetividade”, especialmente quando a notícia caracteriza a situação de sociedades ou Estados que fogem da ótica e execução das propostas e opções econômicas e políticas predominantes, que de tão enraizadas no quotidiano foram naturalizadas. Quem se atreve ao diferente não banal, senão fundamental, para muitos é estranho, exótico, inviável, fora de moda ou extremadamente ousado como para dar certo. Isso faz parte da concretização da ideologia dominante e é perfeitamente explicável. Althusser, dentre outros, detalhava já faz um bom tempo as tarefas dos aparelhos ideológicos do Estado, que servem exatamente para nos dizer, todos os dias, que esta é a única opção possível, que em nosso meio, é a opção que impõe a força do capital.O bloqueio
Não pretendemos, nem é possível reduzir todas as dificuldades ao bloqueio, mas este elemento está longe de ser secundário. O bloqueio não é apenas econômico, o que já seria algo a ser analisado com cautela, especialmente em tempos de pandemia, senão que suas dimensões são políticas, militares, culturais e, logicamente, interferem nas interpretações e subjetividades, é dizer, interferem diretamente no estado de ânimo das pessoas, em seus objetivos e projetos de vida. Voltando às vacinas e à pandemia, o tema mais relevante e divisor de águas de nosso tempo, vale a pena, nesse sentido, fazer um paralelo entre o comportamento do sistema social e de saúde cubano e o de outros países da América Latina nos quais ser contagiado pelo covid é uma tragedia física, mas também econômica e uma sentença de morte. Ou um paralelo, por exemplo, entre as expectativas da protesta em Cuba e a resposta de seu governo e o grau de força dos recentes estouros na Colômbia e a atuação do governo de Iván Duque. As cifras de desaparecidos, assassinados, violentados e violentadas pela força pública no país andino ainda estão sendo contadas pelos funcionários da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, de Human Rights Watch e de outras missões internacionais. Mas, já sabemos que são mais de 1.260 pessoas vitimizadas, entre estudantes, lideranças sociais, defensores de direitos humanos. E como essa há várias indagações e paralelos que merecem ser colocados no tapete e, desde logo, questões que devem ser argumentadas e resolvidas para fugir da superficialidade e de slogans batidos, como a tradicional, “Há necessidade de um novo rumo…estamos com a Revolução, mas temos que ser críticos com o que está mal… há motivos legítimos para a protesta”. Oras, ninguém nega a necessidade da crítica, mas apontar e procurar soluções é outra coisa e claro que sempre poderá haverá descontentamento porque nenhum processo humano está isento de falhas, leves ou graves.Revolução solidificada
Por isso há que ir ao fundamental que é o desenvolvimento e melhora de uma Revolução solidificada ao longo do tempo. Coloquemos uma questão de início: como um país, com severas restrições econômicas, conseguiu enfrentar e posicionar-se no cenário político do mundo, dando amostras de solidariedade a outros povos, resistindo a exercícios diplomáticos de grandes potências que forçavam seu retorno à cobertura de um sistema fundado no mercado e suportando agressões diretas da maior potência militar desde o final da Segunda Guerra? Em contraste, qual tem sido o papel de governos de outros Estados do continente em termos de soberania, desenvolvimento e garantias sociais como educação e saúde?O prestígio de Cuba
Há quem esquece das premissas científicas para responder estas questões. Premissas que modestamente acho vale a pena lembrar, sem a intenção de doutrinar ou que sejam acabadas ou indiscutíveis, mas que me parecem perfeitamente defensáveis e importantes no debate. 1) a Revolução praticamente nasceu bloqueada, avançou bloqueada e continua e bloqueada apesar das votações da ONU e das exigências políticas e do Direito Internacional, Não é possível fazer nenhuma análise sem ter este elemento em perspectiva, mas não como ponto final, senão como ponto de partida, pela razões que esboçamos linhas atrás; 2) A Revolução não constitui somente um fato histórico, senão um processo histórico e nenhum homem ou nenhum grupo de homens pode gerar uma mudança de sistema político-econômico se houvesse uma prática conspirativa permanente ou sem apoio popular. Foi precisamente o respaldo popular aquilo que permitiu a Cuba resistir e avançar a conquistas significativas em vários campos, como o a efetividade dos direitos que nem a modernidade tardia nem a chama pós-modernidade trouxeram por estas bandas; 3), É completamente descabido fazer girar o debate em torno à aplicabilidade do “modelo cubano” em outras realidades. O que é perfeitamente possível é comparar a realidade cubana com a realidade social de outros países da América Latina, e observar as condições em que se desenvolve cada opção de governo e economia e ao final comparar. Por isso frases soltas ou de advertência sobre governos que importariam o “modelo cubano” não passam de idiotices sem sentido, como quando se pretende advertir que escolhendo ou optando por candidatos ou programas antineoliberais o país “vai virar uma Cuba”. A ignorância costuma ser ousada em alguns casos. 4) Os cubanos nunca tiveram medo de reconhecer seus erros ou retificar, pelo contrário, fizeram autocríticas e renovaram processos quando teimosamente outros países, mesmo com o fracassado neoliberalismo continuaram nesse caminho, empobrecendo seus povos, privatizando e entregando recursos. Governos para sociedades empobrecidas que seguiram à risca os ajustes estruturais do consenso de Washington, por exemplo, nunca retificaram, senão que as classes dominantes trabalharam para obstaculizar as opções progressistas e populares que inevitavelmente apareceram no contexto e restaurar governos pusilânimes ou cúmplices ante a estrutura hegemônica de poder internacional; 5) a Revolução democratizou a vida nacional não apenas porque criou mecanismos deliberativos ou participativos, mas também porque democratizou a estrutura de poder que está detrás de todo sistema político. Zagrebelsky ensina isso em seu Direito Ductil com bastante propriedade. O prestígio de Cuba está mais que demonstrado pela admiração que desperta e até pelo fato de que o mundo está a falar dela. Porque suscita inquietações, por uma simbologia nunca esquecida, que mantem viva a ideia de outra forma de conceber o mundo, mas, especialmente porque é um ponto desafiador que o grande capital nunca aturou. Isso não é pouco e nunca será na análise da realidade desde a metade do século XX até os nossos dias.Pietro Alarcón, é doutor em Direito. Professor da PUC/SP. Assessor do Comitê Permanente de Colômbia para a Defesa dos Direitos Humanos (CPDH).
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