Investigação revela ciclo do crime que começa com assaltos e termina em oficinas clandestinas ligadas a traficantes e camelôs.
Por Redação, com Agenda do Poder – do Rio de Janeiro
O aumento dos roubos de celulares no Rio de Janeiro escancara um ciclo criminoso que vai muito além do assalto em si. A partir de dados inéditos do Mapa do Crime, publicado pelo diário conservador carioca O Globo, foi possível traçar as conexões entre os bairros com mais registros, os locais de receptação e as favelas usadas como base para desbloqueio e revenda dos aparelhos.

Um caso ocorrido a apenas 200 metros da 19ª DP, na Tijuca, Zona Norte, simboliza essa engrenagem: uma servidora pública e sua família tiveram quatro celulares levados por criminosos. Poucos dias depois, um dos aparelhos foi localizado no Morro do Fallet, área dominada pelo Comando Vermelho. Segundo a polícia, o destino final seria o Camelódromo da Uruguaiana, ponto conhecido de comércio irregular no Centro.
Esse caminho já é conhecido das autoridades, mas continua difícil de conter. Apenas dez dos 147 bairros analisados concentram um terço dos mais de 14 mil roubos registrados em 2024. O Centro lidera, com 1.622 ocorrências, seguido pela Tijuca (581), Maracanã (455), Barra da Tijuca (424) e Botafogo (423). Em Botafogo, os casos mais do que dobraram em um ano.
A polícia destaca que bairros com grandes centros comerciais ou intensa circulação de pessoas são os mais visados. É o caso da Pavuna, com sua tradicional feira, de Bangu, com o calçadão popular, e do próprio Centro, onde está o principal polo de revenda ilegal de aparelhos: a Uruguaiana.
— Estar perto de uma área de revenda pode ser uma vantagem para os bandidos. Os centros comerciais acabam tendo dupla função: atraem muitas pessoas por serem polos de consumo e, por outro lado, facilitam a recolocação desses produtos no mercado rapidamente — explica o sociólogo Daniel Hirata, da UFF.
Três dias após o roubo na Tijuca, a Polícia Civil realizou uma operação no Fallet. A ação visava interceptar um carregamento de drogas para o réveillon na Zona Sul, mas revelou algo a mais: em um bar da Rua Guaicurus, agentes encontraram cinco toneladas de maconha e uma central clandestina de desbloqueio de celulares roubados. No local, havia 200 aparelhos furtados naquela mesma semana na Região Metropolitana, além de notebooks e equipamentos para reprogramação.
Entre os detidos estava Patrick Fontes Souza da Silva, apontado como um dos maiores receptadores do Rio. Segundo a polícia, ele atuava no comércio ilegal desde 2018, quando tinha uma loja na Uruguaiana. Depois, passou a operar no Fallet mediante pagamento de “aluguel” aos traficantes da comunidade.
Após o desbloqueio, os celulares voltavam para as bancas no centro. A cadeia do crime incluía os assaltantes, que recebiam até 30% do valor de revenda, os técnicos em desbloqueio, que ficavam com parte do lucro, e os revendedores, que repassavam os aparelhos ao consumidor final, muitas vezes, sem que este saiba a origem ilícita.
A delegada Kely de Araújo Goularte, responsável pela investigação, alerta:
— O IMEI é como se fosse a placa de um carro, é a forma de identificar o aparelho. Por isso, é fundamental que o número seja informado no registro de ocorrência pela vítima do roubo. É isso que financia a cadeia criminosa.
Metade dos celulares encontrados no Fallet foi devolvida às vítimas. Os demais ainda não puderam ser restituídos por falta de registro ou identificação.
A ficha criminal de Patrick Silva reforça o problema da reincidência. Ele já havia sido preso duas vezes vendendo celulares roubados, em 2018 e 2019, mas foi liberado pela Justiça dias depois. Atualmente, cumpre pena de 12 anos por tráfico e associação para o tráfico. Sua defesa nega as acusações.
Centro e Zona Sul
Outro nome recorrente nas investigações é o de Maurício Bandeira Lage, conhecido como Azulão. Entre 2022 e 2025, foi preso seis vezes por roubo e furto de celulares no Centro e na Zona Sul. Em sua prisão mais recente, em março deste ano, a polícia encontrou 26 aparelhos em um apartamento do Minha Casa Minha Vida. Azulão, mesmo com tornozeleira eletrônica, deixava o equipamento descarregar propositalmente para cometer novos crimes. Está preso, aguardando julgamento por pelo menos 12 assaltos, todos cometidos com arma de fogo.
Em meio ao cenário de insegurança, a população tenta se adaptar. Muitos cariocas circulam com um “telefone reserva”, um aparelho velho usado para entregar em caso de assalto. Estratégias como essa se tornam comuns principalmente em áreas mapeadas como “pontos quentes”.
Estudos da economista Joana Monteiro mostram que, ano após ano, cerca de 5% do território do Rio concentram metade dos crimes de rua. Os locais mais críticos permanecem os mesmos: Centro, Madureira, Pavuna, Bangu e Tijuca.
— Os resultados mostram um padrão tão forte que é quase uma lei natural: cerca de 5% do território concentram metade dos crimes de rua. Os “pontos quentes” se mantiveram estáveis mesmo com o passar dos anos. Por isso, a resposta do poder público deve ser bastante específica, com intervenções focadas nesses pontos — defende Monteiro, diretora do Laboratório para Redução da Violência (Leme).
A constância desses crimes reforça o desafio das autoridades em conter um mercado ilegal que, mais do que um problema de segurança, se tornou um sistema com engrenagens bem definidas, alimentado pela impunidade, pela demanda e por redes criminosas consolidadas.
Veja, abaixo, os 10 bairros com maior número de roubos de celular no Rio de Janeiro:
Centro – 1.622 ocorrências
Tijuca – 581 ocorrências
Maracanã – 455 ocorrências
Barra da Tijuca – 424 ocorrências
Botafogo – 423 ocorrências
Realengo – 371 ocorrências
Bangu – 350 ocorrências
Madureira – 294 ocorrências
Campo Grande – 288 ocorrências
Pavuna – 259 ocorrências