Se em situações um pouquinho mais complicadas, de sucessões infernais de números, os apoiadores de Bolsonaro passam dificuldade, imaginem diante da ampliação do lugar onde pisam.
Por Urariano Mota – de São Paulo
Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, publicou nesta semana um bom artigo na Folha de São Paulo, Sob o título de “Quem tem alergia a matemática?”, ele relatou casos curiosos dessa “alergia”, para não usar palavra mais própria:Terra redonda tenha se tornado plana
Esse artigo me deu uma das explicações, ou talvez a explicação, de por que a Terra redonda tenha se tornado plana. Ora, se em questões elementares de matemática, o grande público não sabe que 1/3 é maior que ¼, ou que a terça parte de um todo, 0,333…. , é maior 0,25, a quarta parte desse todo, o que podemos dizer? Em que mundo estamos? Pior ainda, o que já entra no reino do terrivelmente cômico, se as pessoas não sabem que o número 64 é menor que o número 80, o que dizer? Mas essa realidade está muito próxima de nós, hoje, em todo o Brasil. Conto agora, no sentido de contar, narrar, um caso ocorrido comigo. Nesta semana, fiquei em uma das filas de vacinação contra a covid. Uma das atendentes “para organizar” a primeira fila, de vez em quando aparecia e anunciava os números de fichinhas, os números, de novo!, que seriam atendidos. E de tal maneira a coisa era organizada, que às vezes as pessoas com suas fichinhas não atendiam ao chamado. Então a organizadora passou a chamar por centenas. Assim: “De 200 a 290, fiquem ali”. E logo depois, “De 400 a 490…”. Então eu protestei. “Não seria agora de 291 a 380?”. Acreditem, a jovem se atrapalhou a ponto de gaguejar: “Hem?”. E reagiu: “Eu estou chamando por centenas!”. Então eu, do modo mais sério e respeitoso, lhe respondi: “Mas depois de 290 vêm 291, 292, 293… não vem 400”. Ela concedeu contrariada e gritou: “291! 292! 293!….”. Terrível, Para mim, de modo claro, ela expressava uma falta absoluta de educação, aquela fora dos livros de boas maneiras. Mas isso, antes de acender em nós um escândalo, um escárnio, uma indulgência falsamente acima da funcionária, deveria nos acordar para um sério perigo. No caso daqueles números fora da ordem, a jovem ouviu o que eu falei a um vizinho na fila: “Temos que eleger Lula. Fora Bolsonaro”. E fechou a cara, e falou alto fora das centenas: “Nada a ver. Nada a ver!”. E se dirigiu numa rabiçaca para a frente. Eu cheguei a temer que ela fosse orientar a enfermeira para fingir que me aplicava a vacina.Perto do chão e da Terra
Agora chegamos mais perto do chão e da Terra do título. Olhem, se em situações um pouquinho mais complicadas, de sucessões infernais de números, os apoiadores de Bolsonaro passam dificuldade, imaginem diante da ampliação do lugar onde pisam. O chão é plano? O chão é reto? O chão segue sempre plano até a praça? Sim! Então, como é que se fala que a terra é redonda?! Se assim fosse, a gente andava pra frente e já escorregava. Era o memo que o globo da morte do circo. E de vez em quando, ficava de cabeça pra baixo. Essa é a situação. E falariam e falam: “Não venham com o papo que desde os gregos os matemáticos já sabiam que a terra era redonda. Isso é maluquice dessa gente LGBT não sei mais o quê, degenerados contra a Igreja”. O que fazer? Para esses apoiadores do Bozo, crentes do mundo da pré-história, não adianta lembrar aquela frase imortal de Marx: “Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária”. Para que serviria o pensamento científico? Somente para complicar o mundo que Deus criou. Se não está na Bíblia, não existe. Então a aposta brutal na ignorância pelo indivíduo na presidência, é claro, possui raízes históricas, contra a sua vontade. Assim foi na perseguição e morte de filósofos, artistas e intelectuais durante o fascismo e o nazismo. Assim foi na gigantesca fogueira de livros ordenada por Hitler. Assim foi o ideal da raça pura, superior, que era o encontro do absurdo dos absurdos, pois nem existem raça nem pureza. Mas eles acreditavam, e por isso levavam os inferiores para os fornos crematórios. E o que dizer, mais perto de nós, do ambiente de terror durante a ditadura? Pois foi nela que a censura se tornou um modo de comportamento contra gênios, a mestres do nível de Paulo Freire, que tiveram de se exilar. Portanto, essa crença, abaixo da idade média de que a Terra é plana, é loucura, mas lá tem seu método. Quem dá viva a Bolsonaro acha natural que tudo seja plano, ao nível mais raso e rasteiro. Quanto a nós, jornalistas, literatos, educadores e intelectuais, temos que lutar incansáveis com obras, aulas, atos e números contra essa Terra plana. Quem sabe um dia, talvez a gente consiga que a Terra seja plena, de humanidade e conhecimento. Esse é o plano.Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.
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