Rio de Janeiro, 23 de Julho de 2025

Café, chibata e diploma

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Terça, 15 de Julho de 2025 às 13:09, por: CdB

O projeto de um monumento à juventude negra, fruto de mobilização estudantil, desafia a tradição elitista e os silêncios históricos da USP Ribeirão Preto.

Por Amarílis Costa – de São Paulo

Há quem veja neste solo apenas a poeira vermelha que se ergue com o vento. Poeira de sertão, cantada com melancolia e certo orgulho rude. Mas eu insisto em ver mais: vejo o sangue que tingiu esta terra com o trabalho forçado de corpos pretos. Vejo marcas tão fundas quanto os sulcos abertos pelas rodas de carros de boi, empurrando a história para um rumo desigual.

Café, chibata e diploma | Faculdade de Direito de Ribeirão Preto
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto

A antiga fazenda de café não é mero cenário bucólico a ser celebrado em versos ufanistas. É testemunha muda de um regime que esmagou vidas para encher cofres. Aqui mesmo, no Caminho da Mogiana, escravizados compravam com o suor de domingos e dias santos uma sobrevivência precária, negociada com grilhões. Roceiros negros cultivavam o que podiam em minifúndios concedidos a contragosto, sustentando-se com a força arrancada do cativeiro. Era o capitalismo à brasileira: de café e chibata. Um sistema que não concedia liberdade plena nem ao emancipado — apenas o transformava em colono mal pago.

Hoje, ao falarmos de universidades erguidas sobre essas terras — como o campus da USP em Ribeirão Preto, instalado na antiga Fazenda Monte Alegre — é impossível não lembrar: mãos negras adubaram este solo com a própria carne. O café aqui produzido dependia não apenas do clima e da terra, como ensinam os manuais agrícolas, mas também da crueldade metódica que dominava a lavoura: o sol a pino sobre peles negras, o manejo violento de vidas, tratadas como brotos a serem podados.

Fico pensando se o solo se lembra. Se as raízes antigas do café murmuram entre si o que viram. Agora, esse mesmo chão carrega uma tarefa histórica inadiável: transformar-se em polo de conhecimento com excelência — e memória. Que não finja neutralidade. Que não nos sirva o aroma sofisticado do saber filtrado por elites brancas enquanto varre para debaixo dos tapetes acadêmicos as marcas da chibata.

É preciso dizer com todas as letras que as universidades públicas brasileiras não nasceram inclusivas. A USP, celebrada como farol do ensino gratuito, resistiu ferozmente à democratização do acesso. Nada foi dado de graça: cotas raciais surgiram de embates, ocupações, processos judiciais e insultos rabiscados em banheiros e armários. Em Ribeirão Preto, neste solo ainda fresco de latifúndio, brotaram pichações nazistas como flores envenenadas, uma tentativa de silenciar alunas negras que ousaram propor reparação.

Chamo isso de cafezal moderno: um lugar onde o discurso meritocrático floresce bem adubado, enquanto se roça fora de vista toda memória incômoda.

Quando a Faculdade de Direito propôs erguer o Monumento à Juventude Negra, não se tratou de estética, mas de memória e disputa. Para quem preferia a “ordem”, foi um soco na mandíbula moral: lembrá-los de que este campus foi solo escravocrata, e que até hoje adoece corpos negros com sua branquitude dominante.

O monumento, idealizado por um coletivo negro que recusou ser nota de rodapé, não é apenas aço moldado por um artista negro renomado. É uma fresta para o futuro. Uma fenda luminosa por onde possa entrar o vento da reparação.

É claro que houve quem quisesse trancar essa janela. Invocaram ordem, decoro, formalidades… as mesmas estratégias burocráticas que sempre protegeram privilégios. Ironia fina: a universidade do “livre pensar” mostrando-se tão conservadora quando o tema é redistribuir simbolicamente poder.

Mas o projeto seguiu. E mais: floresceu. A campanha pública arrecadou não só para o monumento, mas também para bolsas estudantis. Porque reparação sem condições materiais de permanência é como plantar café em solo raso: nasce mirrado, não vinga.

USP Ribeirão Preto

Se hoje a USP Ribeirão Preto ergue, mesmo entre protestos, um monumento à Juventude Negra, que não seja para celebrar vitória fácil. Mas para lembrar que toda reparação verdadeira é incômoda. Como poeira vermelha que se infiltra pelas frestas e mancha o que se queria manter limpo.

Não me interessam universidades que reproduzem excelência para poucos. Quero ver essas antigas fazendas de café, onde a terra foi amaciada com o sangue dos meus, tornarem-se quilombos de saber. Espalhando sementes de dignidade, colhendo frutos de justiça.

Pois se meu corpo irá para o chão, como na canção, que seja para virar poeira a fertilizar mudança. Que o chão carregue a memória. Que a universidade não se limite a erguer monumentos, mas mude a forma como olha para si, para quem chega, para quem foi deixado de fora.

Porque em cada letra preta gravada nessas paredes brancas há a promessa de que o Brasil pode ser mais do que um imenso cafezal com senhores de terno e gravata. Pode ser, quem sabe, uma biblioteca viva onde todas e todos tenham o direito de ler, escrever e existir — sem permissão, sem favor, sem correntes.

 

Amarílis Costa, é advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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