Agora é a guerra do segundo turno. Guerra, sim. E essa era uma das razões para liquidar a parada no primeiro turno. O que se viu foi um Bolsonaro mais forte do que o esperado. O bolsonarismo, fenômeno que transcende a pessoa do líder e as fronteiras brasileiras.
Por Paulo Nogueira Batista Jr. – de Brasília
Estamos em estado de choque, leitor. Começo este artigo na noite de domingo, dia do primeiro turno. Tinha um outro artigo, praticamente pronto, para publicar na segunda-feira seguinte, intitulado “O terceiro turno”, no qual fazia considerações sobre a pretensão do poder econômico-financeiro de colonizar o futuro governo Lula. Um resumo chegou a ser publicado na revista Carta Capital. A versão completa foi, porém, engavetada para uma ocasião mais oportuna, por motivos óbvios.Economia
A economia é um dos dados da conjuntura que precisam ser levados em conta, como sempre. O nível de atividade econômica e o mercado de trabalho melhoraram gradualmente ao longo de 2021. O PIB está crescendo mais do que se previa no início do ano, com o crescimento projetado para algo entre 2,5% e 3%. A taxa de inflação esperada para o ano caiu para menos de 6%. O nível de emprego aumentou, inclusive mais do que o PIB, e a variável emprego pesa mais do ângulo político do que o crescimento do produto. O aumento da elasticidade aparente do emprego em relação ao produto precisa ser investigado, mas parece dever-se em parte à mudança na composição do PIB, com crescimento do peso relativo do setor serviços, mais intensivo em trabalho. O desemprego continua alto, em 8,9%, mas vem caindo, apesar do aumento na taxa de participação, isto é, da relação entre a população economicamente ativa e a população em idade de trabalhar. A taxa de informalidade, ainda alta, quase 40%, caiu um pouco, graças ao crescimento do emprego formal. Com as medidas de estímulo adotadas, notadamente o aumento do Auxílio Brasil, é provável que a economia e o emprego continuem crescendo ao longo do mês de outubro, nas semanas que antecedem o segundo turno. E, como dizia, Juan Perón (e não Delfim Neto, como eu cheguei a dizer aqui nesta coluna), o bolso é a parte mais sensível do corpo humano. Olhando para além da conjuntura, os resultados de domingo deixaram claro, para quem tinha dúvidas, que estamos diante de um fenômeno da maior importância, a força eleitoral no Brasil da ultradireita, fascista ou protofascista, espelhando o que vem acontecendo em outras partes do mundo. Bolsonaro e o bolsonarismo não são, infelizmente, um ponto fora da curva. Essa ultradireita, mais agressiva, mais primitiva do que a direita tradicional, é uma verdadeira onda aqui e em outros países.Várias facetas
Não vou tentar caracterizá-la agora, com suas várias facetas, pois essa ultradireita já é uma conhecida nossa. Limito-me a inseri-la, em rápidas pinceladas, na história política brasileira. Desde que voltaram as eleições diretas para presidente em meados do século 20, o Brasil teve algumas ondas políticas poderosas. A primeira, inaugurada por Getúlio Vargas, passou por JK, Jango e terminou com Brizola, depois de ter sido interrompida pelo golpe militar de 1964. A segunda onda, inaugurada por Lula e pelo PT, surgiu nos anos 1980 e está viva até hoje, graças em grande medida ao talento e carisma do seu principal líder político. A terceira onda é o bolsonarismo, que também tem, quer gostemos, quer não, um líder carismático e popular. Hoje existem, na verdade, apenas dois líderes políticos que têm conexão com o povo, Lula e Bolsonaro, e não por acaso os dois se enfrentarão no segundo turno. A onda Lula-PT, mais antiga, envelheceu? “Aburguesou-se”? Ou conserva o dinamismo original? É o que veremos nas próximas semanas. Como o PT e os demais setores da esquerda e da frente ampla se comportarão? Estarão à altura do desafio? Apesar de tudo que escrevi acima, Lula continua o favorito. Saiu vencedor do primeiro turno, como ressaltei. A bancada do PT e de outros partidos de esquerda cresceu. Houve também vários pontos positivos nas eleições para governadores e para o Parlamento. Lula tem potencial para ampliar ainda mais sua aliança, já muito ampla. Simone Tebet pode se juntar à frente ou pelo menos indicar apoio crítico a Lula. Ciro e o seu partido, o PDT, convergiram para Lula, mais o partido do que o candidato derrotado. Mesmo que Ciro não faça esse movimento com convicção, por razões evidentes, boa parte, talvez a maior parte dos seus eleitores ficarão com Lula. No geral, a campanha de Lula foi muito bem. Estando na liderança, não se espera que Lula faça movimentos bruscos e reformulações profundas na sua estratégia. Como se espera, já começou a movimentação na direção de Simone e Ciro, algo consistente com a frente ampla em defesa da democracia. Pergunto, porém, será que Lula não deve recalibrar a campanha no segundo turno? A pergunta se deve ao seguinte. A frente superampla, a “Arca de Noé”, como disse o próprio candidato, é necessária não só para as eleições como para o governo, não há dúvida quanto a isso. Mas até aí morreu Neves.Arca de Noé
Há de se reconhecer que os temas que empolgam a Arca de Noé não sensibilizam muito o povo, a ampla maioria do eleitorado. Defesa da democracia contra a extrema direita? Beleza. Civilização contra barbárie? Ótimo. Mas, convenhamos, o povo brasileiro vive na barbárie desde sempre e mal conhece essa tal de “civilização”. Pouco ou nada entendo de povo, confesso. Mas não existe o risco de que Lula, acompanhado que está de figuras carimbadas do establishment nacional, acabe sendo visto pelo povo pobre e sofrido como mais um representante do “sistema” que nunca fez nada por ele? Ou será que memória do governo Lula é suficiente para afastar esse risco? Difícil dizer. Em todo o caso, talvez seja recomendável retomar com mais clareza temas e propostas diretamente ligados aos interesses imediatos daquela grande maioria que está na emergência. Por exemplo, anunciar que Lula restabelecerá o Bolsa Família, aumentando o valor médio do benefício para, digamos, algo como R$ 800 ou R$ 1.000. Bem sei que Lula terá de manter o apoio dos setores mais conservadores da frente ampla, que não são fanáticos pela responsabilidade social. Mas de que adianta manter a frente ampla unida e perder a eleição? O aumento do benefício, por outro lado, estava no programa de Ciro e foi um dos pontos pedidos pelo PDT para dar “apoio programático” e ingressar na frente pró-Lula. O PDT pode ajudar a inclinar a Arca de Noé um pouco para o lado popular. Reconheço que a campanha de Lula, se for realmente recalibrada, terá de ser bifronte. O reforço da parte relativa à responsabilidade social talvez possa ser acompanhado de um reforço do compromisso com a responsabilidade fiscal, anunciando-se por exemplo desde logo uma nova regra fiscal, mais inteligente do que o teto Temer, proporcionando uma indicação da estratégia para as contas públicas no médio prazo. Lula atenderia, assim, pelo menos em parte, o clamor dos setores de direita e centro-direita da Arca de Noé por definições mais precisas na área econômica. Obviamente, a cada dia surgem fatos novos. Concluo este artigo, portanto, dizendo que ele foi finalizado no início da tarde do dia 4 de outubro do ano da graça de 2022.Paulo Nogueira Batista Jr.,é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. É autor do livro "O Brasil não cabe no quintal de ninguém", lançado pela editora LeYa. E-mail: paulonbjr@hotmail.com Twitter: @paulonbjr Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br
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