Rio de Janeiro, 23 de Julho de 2025

A democracia não sobrevive à agonia do capitalismo

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Terça, 22 de Julho de 2025 às 17:00, por: Rui Martins

O último momento em que houve grande confiança no progresso da civilização sob as salvaguardas democráticas foi o início do século 20, mas aí veio a 1ª guerra mundial e teve o efeito de um banho de água fria no otimismo que recentes avanços científicos e tecnológicos haviam despertado.

Por Celso Lungaretti, jornalista, escritor, militante, editor do blog Náufrago da Utopia.

A democracia não sobrevive à agonia do capitalismo | A opção que nos resta é voltarmos a travar as lutas sociais que nos permitam acumularmos força e mobilizarmos cada vez mais efetivos.
A opção que nos resta é voltarmos a travar as lutas sociais que nos permitam acumularmos força e mobilizarmos cada vez mais efetivos.

Isto porque o conflito de 1914/1918 foi um pesadelo. Os dois lados escavaram trincheiras para bloquear o inimigo e conseguiram seu intento, imobilizando-se mutuamente. Então, dia após dia lançavam suas tropas em tentativas temerárias de quebrar o equilíbrio de forças, fracassavam e voltavam a suas posições, após sofrerem baixas tão elevadas quanto inúteis. Dava a impressão de que a carnificina se prolongaria indefinidamente.

Foram, portanto, levadas de roldão aquelas fugazes esperanças e o sentimento dominante voltou a ser o de que a barbárie continuava à espreita e o homem, sempre propenso a reassumir o papel de lobo do homem.

Certo quem estava era Edgar Allan Poe, ao constatar que o horror e a fatalidade marcavam a história da humanidade ao longo dos tempos. dispensando-o de datar a história trágica que iria contar, pois poderia ter acontecido em qualquer época.

Desde então o que se viu foi um festival de horrores: resiliências do colonialismo; fascismo; nazismo; o comunismo real (na verdade um capitalismo de estado intrinsecamente autoritário que horrorizaria Marx); um novo conflito mundial; o holocausto dos judeus e o posterior holocausto dos palestinos; a utilização de bombas atômicas contra um Japão na iminência de render-se; a guerra fria; as ditaduras bestiais brotando como cogumelos nas Américas Central e do Sul durante os anos de chumbo; a África quase toda abandonada à miséria, fome e disputas tribais, etc.

Mas, quando a crise dos misseis cubanos em 1962 colocou a humanidade a um passo da extinção durante três semanas, o susto foi tão grande que reavivou a vontade de viver de expressivos contingentes humanos, principalmente os jovens.

A esquerda atravessou então seu grande momento, com os movimentos em prol dos direitos civis nos EUA, seguidos pela também vitoriosa resistência à Guerra do Vietnã; as Primaveras de Praga e de Paris; a contestação jovem nos EUA e em vários países europeus e americanos.

Durante cerca de 10 anos muitos sonharam e muitos tentaram fazer com que os ganhos alcançados pelas gentes no processo produtivo passassem a beneficiar a sociedade como um todo, libertando-a dos grilhões da necessidade, ao invés de serem usurpados por uma minoria de bilionários e outros parasitas.

Mas a maioria silenciosa (porque não tinha o que dizer) acabou prevalecendo sobre as minorias que tentavam escancarar as portas da percepção e desbloquearem os afetos para engendrar um futuro paradisíaco.

Aquele foi o momento no qual o potencial produtivo da humanidade como um todo, por força dos avanços científicos e tecnológicos concretizados, finalmente possibilitava que se proporcionasse o suficiente, em termos materiais, para a realização plena de todos os seres humanos. Ou seja, depois de uma trajetória de milênios, finalmente podia ser transposta a barreira da necessidade.

Mas, para que o feito beneficiasse a todos e cada um dos habitantes de nosso planeta, a prioridade econômica suprema teria de ser o bem comum e não a perpetuação e continuo aumento da fortuna dos ricaços em detrimento da grande maioria dos seres humanos, condenada à miséria ou a estágios intermediários de insatisfação por nunca conseguir satisfazer totalmente suas expectativas, insufladas até o paroxismo pela indústria cultural.

A desigualdade econômica, contudo, coloca à disposição dos privilegiados uma gama enorme de recursos para manterem subjugados os que estavam abaixo deles, contando para tanto com dois trunfos poderosíssimos: os fetiches do consumismo e a lavagem cerebral dos cada vez mais aprimorados meios de comunicação de massa (daí o empenho do Trump em garantir total liberdade de empulhação para as big techs).

Ao sair vitoriosa no embate contra as proposições da contracultura e as barricadas dos sonhadores do absoluto, a sociedade de consumo instaurou uma nova ordem na qual o consumidor tem sempre razão mesmo quando não tem nenhuma razão.

E a disseminação da internet por todas as classes de renda permitiu que aqueles que não tinham nenhuma razão fizessem ouvir estridentemente seu besteirol, superando, por serem bem mais numerosos, os que se preparavam para dizer coisa com coisa.

A idiotia religiosa foi fortemente alavancada em detrimento do conhecimento científico e a lei do talião cada vez mais substituiu a empatia, a compaixão e a tolerância, pois é mais fácil exterminar os excluídos que cedem à tentação de tomar pela força o que já não conseguem obter com trabalho do que reeducá-los e dar-lhes acesso, ainda que limitado, aos oásis do consumo.

O capitalismo agoniza porque só funciona a contento havendo continuo crescimento econômico, o que é impossível dadas as contradições que condenam contingentes cada vez mais amplos de seres humanos à miséria e à exclusão social.

A democracia agoniza porque a minoria de privilegiados já não conta apenas com a força bruta para sufocar os anseios da maioria de explorados. Eventualmente ainda recorre a golpes de estado como o que Jair Bolsonaro tentou (só fracassando por crassa incompetência dos conspiradores que reuniu e desmesurada covardia pessoal), mas consegue também conquistar maioria no Executivo e no Legislativo pelo voto popular, mesmo quando prega ostensivamente mentiras cabeludas e desumanidade extremada.

Como resistirmos à nova barbárie ultradireitista? É o que teremos de aprender em conjunto, à medida que formos conseguindo vitórias expressivas contra essa outra forma de infestação que, de tão nefasta, lembra até a pandemia de covid 19.

Uma coisa é certa: a democracia já não nos serve mais como trincheira, pois é cada vez maior a facilidade com que o inimigo ocupa tal bastião.

Não podemos desconsiderar o fato de que, apesar de Donald Trump haver tentado um autogolpe com o ataque ao Capitólio em janeiro de 2021, conseguiu escapar da punição que se impunha simplesmente por haver, com suas vaquinhas de presépio, obtido uma maioria espúria na Suprema Corte.

A decisão unânime de inocentar Trump pelo que ele era clamorosamente culpado faz crer que nem Hitler seria condenado por esses fiéis escudeiros fantasiados com togas. E o mandato que Trump não deveria estar exercendo é um rosário de ilegalidades gritantes mas toleradas, conforme os brasileiros estamos constatando.

Mais: não devemos nos tranquilizar com o fracasso do autogolpe bolsonarista pois, no frigir dos ovos, o que impediu o sucesso da conspiração foi ela não haver conseguido cooptar os generais. Se dependesse do restante da oficialidade, o mito não estaria reduzido ao mico surtado que a CNN expôs à execração pública.

A direita que usa os talheres deverá prevalecer nas eleições de 2026 e 2028, tendo, contudo, a direita que agarra a comida com as patas como coadjuvante. E é só. Conseguimos apenas adiar por alguns anos a tomada do poder pelos celerados, cuja faina para transformar o Brasil num hospício nem de longe cessou. O bananinha 03 está aí para comprovar.

E quanto mais a crise estrutural da economia capitalista agravar-se, provavelmente em sinergia com os estragos crescentes das alterações climáticas, mais o terreno ficará propício para a truculência obtusa dos ultradireitistas.

Seguindo o exemplo do seu precursor Hitler na década de 1930, eles avançam como rolos compressores e, utilizando exigências falaciosas, blefes e demonstrações de força, vão submetendo implacavelmente os Poderes de várias democracias.

A opção que nos resta é voltarmos a travar as lutas sociais que nos permitam acumularmos força e mobilizarmos cada vez mais efetivos, percorrendo trajetória inversa à adotada pelo PT nas últimas décadas, quando o partido concentrou seus melhores esforços nas disputas eleitorais e chegou ao cúmulo de resignar-se à tomada da avenida Paulista pela direita quando do Fora Dilma!

[O inimigo, no entanto, não passava de um tigre do papel e bastaram estudantes secundaristas e torcedores organizados do Corinthians para o escorraçarem na fase do Fora Bolsonaro!]

Só teremos alguma chance de êxito nas atuais circunstâncias se conseguirmos convencer os cidadãos comuns de que já somos e cada vez mais seremos a alternativa à barbárie.

Daí ser fundamental termos sempre em mente que a violência deve partir apenas do inimigo, mas precisamos estar preparados para resistir a ela. Cabe-nos dar exemplo de civilidade, mas não de pusilanimidade… (por Celso Lungaretti, jornalista, escritor, combatente contra a ditadura militar de 64-85).

Direto da Redação é um fórum de debates editado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.

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