Na véspera do Natal de 2019, na madrugada de 24 de dezembro, um deslizamento de barreira que trouxe abaixo 440 toneladas de terra destruiu duas casas e matou cinco pessoas da mesma família e mais duas amigas na Rua Bela Vista, no Córrego do Morcego, em Dois Unidos, Zona Norte do Recife (PE).
Por Redação, com Brasil de Fato - de Brasília
Na véspera do Natal de 2019, na madrugada de 24 de dezembro, um deslizamento de barreira que trouxe abaixo 440 toneladas de terra destruiu duas casas e matou cinco pessoas da mesma família e mais duas amigas na Rua Bela Vista, no Córrego do Morcego, em Dois Unidos, Zona Norte do Recife (PE).Colapso da barreira
O laudo ao qual a reportagem teve acesso aponta que o cano de 100 milímetros de PVC apresentava sinais de desacoplamento da conexão, tinha folgas nas suas bases e ranhuras nas extremidades, e que seu vazamento deflagrou o colapso da barreira. “O vazamento de água e o desacoplamento da conexão da tubulação de PVC de 100 mm do sistema de distribuição de água da Compesa produziu a saturação com água do trecho do talude, provocando o aumento repentino do peso deste trecho do terreno, que já estava instável, instabilizando ainda mais o mesmo, iniciando o movimento de ruptura do trecho do talude em volta dos tubos”, diz a conclusão do texto. “As ranhuras verificadas nas pontas das tubulações, e os indicativos de que as mesmas não estavam quebras, ou afins, evidenciam que fora neste trecho do talude por onde ocorreu o vazamento, que forneceu água momentânea e intensa, vindo a saturar o barro no seu entorno, aumentando o peso do barro ali existente e a poro-pressão, o que culminou com a deflagração do deslizamento", fala outro trecho. O documento coloca que o trecho que desabou já estava comprometido por fatores externos pré-existentes: "desmatamento; ocupação irregular e desordenada; desnível acentuado e acúmulo/depósito de lixo/entulhos.”Danos morais e materiais
O advogado que representa os moradores, Sérgio Caldas, explica que a ação por danos morais e materiais já foi ajuizada e que a Compesa apresentou sua defesa, com base em outro laudo encomendado pela empresa a uma prestadora de serviço. “A defesa da Compesa gravita em torno desses (outros) elementos, quase como culpando os moradores, por ser uma área de risco. E aí eles juntam o estudo de uma empresa, contornaram o problema principal”, afirma. “Os peritos do IC coletaram as amostras da terra, e acima do cano estava seco. Do cano para baixo, estava molhado. Mostra que o vazamento da água veio a partir daquele nível, onde veio o cano, que estava desacoplado”, comentou. Para o advogado, uma tragédia anunciada. “É um acidente previsto para ocorrer, porque você não pode ter uma encanação mestre que passe por dentro de uma barreira. Como você vai fazer uma manutenção, um reparo eventualmente?”, questiona. Esses fatores embasam a acusação. “O entendimento de que é dever da Compesa fazer manutenção e reparo e evitar esse tipo de acidente. No momento em que o rompimento de uma tubulação dessa é causa das mortes e da destruição das casas, a Compesa tem que responder material e moralmente por isso”, defende. A família está pedindo uma indenização de 500 salários mínimos por cada perda, para cada um dos quatro requerentes. A previsão de Caldas é de que o processo, que corre na 14ª Vara Cível do Recife, fique pronto para julgamento até o final deste ano. Além da ação por danos morais, a Polícia Civil de Pernambuco (PCPE) também investiga se há responsabilidade de ordem criminal no evento. Um inquérito segue em andamento com designação especial do delegado Victor Marinho. “Já foram realizadas diversas diligências, incluindo perícias e atualmente se aguarda respostas de alguns órgãos oficiais para os questionamentos formulados pela PCPE”, diz a polícia em nota.A ferida que não sara
Alexsandra de França Silva, 48, perdeu no incidente o filho Emanuel Henrique, 25, a nora, Érica Virgínia, 19, e o neto recém-nascido, Érick Júnior, de dois meses. Desde aquele Natal, sua vida mudou de um jeito irreparável. Morando em uma residência vizinha ao cenário da tragédia, Alexsandra passa os dias enclausurada. “É praticamente 24 horas dentro de casa. Só saio para fazer uma feira ou ir ao médico. É muito difícil abrir minha porta, minha janela, toda visão para lá. Eu era uma pessoa ativa, adorava andar, fazia viagem para Caruaru, para Santa Cruz, saía em excursão e não faço mais nada porque era meu filho que levava ”. A saudade se materializa nos pertences do filho que continuam intocáveis em cima de uma cama. “Estou há quase dois anos sem tirar ainda, não tenho coragem ainda, não tenho força”, conta. O sentimento se manifesta também no corpo físico. “Eu nunca tive problema de asma e agora acrescentou mais essa medicação da minha receita, quando vou falar do menino vou perdendo a voz, tenho crise de cansaço. Eu sinto muita falta. É uma falta tão grande que chega a doer”, revela. A palavra medo aparece em seu depoimento. “Quando minha filha sai pra trabalhar e demora um pouco e eu já fico: ‘Não tira minha filha, não”, fala, em referência a Sthefanie, 23, que trabalha dia sim e dia não com enfermagem. “Eu digo que vivo um dia porque minha filha está em casa, e no outro dia eu to morta quando ela não está.”– Quando eu escuto zuada de chuva, eu fico com medo.
Um dos imóveis destruídos, onde morreram Emanuel, Érica e Érick, era de propriedade da mãe de Alexsandra, Jacira Maria de França Silva. Em outro, morava Otoniel Simião da Silva, 58. Naquele Natal, estavam em sua casa a esposa Lucimar Alves, de 50 anos; a neta Daffyne Kauane Alves, 9; e as amigas Claudia Bezerra, 47, e Lia de Oliveira, 45. Do grupo, apenas Otoniel sobreviveu à avalanche de barro que caiu.
Entre as medidas de assistência que o Governo de Pernambuco prestou aos sobreviventes, está a indenização pelas residências. A de Jacira foi avaliada em R$ 90 mil, valor que já foi conseguido e utilizado para a construção de um segundo andar na casa da outra filha, na mesma rua. O caso de Otoniel é mais complicado: o imóvel está no nome da sua mãe, e, para conseguir a indenização de R$ 120 mil, precisa reunir a assinatura de suas cinco irmãs. Atualmente ele mora de aluguel na casa de uma amiga vizinha. “Não pago quase nada, porque ela é que está cuidando de mim, do outro lado da rua. Queria resolver alguma coisa, comprar um barraco para botar a cabeça dentro”, compartilha. O trauma também o persegue. “Quando começa a chover, quando eu escuto zuada de chuva, eu fico com medo. Só me lembro de estar soterrado, e aquela agonia, de acordar já numa cama no hospital”, diz.