Nada é perfeito, lamentavelmente. A Arca do Lula está ficando meio lotada e, vamos ser francos, com passageiros, às vezes, bem duvidosos. Tudo bem, queremos nos ver livres desse desastre chamado Bolsonaro.
Por Paulo Nogueira Batista Jr. – de Brasília
A arca de Noé do Lula é uma beleza, leitor. Tem sido merecidamente elogiada. Trata-se de uma construção brilhante e bem brasileira. O brasileiro é, entre muitas outras coisas, um eclético e um pragmático. E o nosso Noé, o ex-presidente Lula, é um brasileiro até a medula. E está é, aliás, uma das razões da sua preeminência na política brasileira desde os anos 1970. Qualquer que seja o resultado desta eleição, Lula já se tornou, pelo muito que fez, pelo muito que sofreu, pela maneira como resistiu a uma perseguição implacável, uma figura lendária, uma verdadeira lenda brasileira.Arca do Lula
Portanto, a Arca do Lula é tudo menos excludente. Como coração de mãe, cabe todo mundo. Entra qualquer um, desde que comprometido com o antibolsonarismo. A frente ampla se define, portanto, fundamentalmente pelo negativo. Disso decorre um problema: dentro da Arca temos a presença expressiva da poderosa direita ou centro-direita tradicional, órfã da terceira via. Sem querer pecar pelo excesso de didatismo, lembro que a política brasileira se divide, grosso modo, em quatro grandes blocos: 1) a centro-esquerda e a maior parte da esquerda, lideradas por Lula e pelo PT; 2) a direita ou centro-direita tradicional, que inclui a Faria Lima e a mídia corporativa e vinha sendo representada sobretudo pelo PSDB, hoje em frangalhos; 3) a direita ou centro-direita fisiológica, que inclui o Centrão e outros partidos ideologicamente indefinidos, em geral de base regional; e 4) a extrema direita bolsonarista, fascista ou protofascista, representada no Congresso pelo bancada BBB (bíblia, boi, bala). Existem outras forças, mas são periféricas. O bloco 4, antes totalmente inexpressivo no Brasil, saiu do armário com força e espalhafato em 2018. A Arca de Lula inclui a maior parte do bloco 2. O bloco 3 está hoje majoritariamente com o bloco 4, mas pode desembarcar a qualquer momento e pleitear ingresso na Arca, dependendo, claro, do resultado do segundo turno. Com as pressões incansáveis de integrantes do bloco 2, a Arca está adernando perigosamente para a direita. De novo, na conjuntura dramática que vivemos, só um radical louco pensaria em rejeitar ou hostilizar companheiros do bloco 2. São legítimos passageiros da Arca. Afinal, ela é ou não é coração de mãe? E digo mais: se ainda houver algum financista, algum neoliberal, algum fisiológico, até mesmo algum ex-bolsonarista, disposto a embarcar tardiamente, que seja recebido aos beijos e abraços.Os neocompanheiros
No entanto, leitor, sem ilusões! E com uma dose saudável de hipocrisia, aquela mesma que La Rochefoucauld dizia ser a homenagem do vício à virtude. Os neocompanheiros, por mais simpáticos, por mais dedicados ao discurso da justiça social e da democracia, nem sempre são autênticos. De uma maneira geral, digamos diplomaticamente, a autenticidade não é seu forte. Também são discípulos de La Rochefoucauld. Obviamente, o peso do bloco 2 aumentou com o resultado do primeiro turno. O bloco 1 precisa, mais do que nunca, do seu apoio, e de parte do bloco 3, para derrotar o 4. Política também é a arte de engolir sapos. Por outro lado, leitor, convenhamos: de que adianta ganhar as eleições e perder o governo? Temos que ser, sim, flexíveis, sutis e até delicados. Mas, cuidado: não vamos perder a alma. Lembrei do verso de Rimbaud: “par délicatesse, j’ai perdu ma vie” (por delicadeza, perdi minha vida). Não digo que possamos perder a vida, mas a alma sim! No imediato, a luta é contra a destruição do Brasil, que será inevitável se Bolsonaro se reeleger. Mas logo em seguida a disputa será pela hegemonia na frente superampla que comporá o governo, em caso de vitória de Lula. Realismo acima de tudo, portanto! No popular: um olho no peixe, outro no gato!Paulo Nogueira Batista Jr., é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. É autor do livro "O Brasil não cabe no quintal de ninguém", lançado pela editora LeYa. E-mail: paulonbjr@hotmail.com Twitter: @paulonbjr Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br
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