Quinhentos anos depois, a Reforma foi a detonadora junto com a Renascença e a tipografia de Gutemberg, de um movimento mais vasto que, a princípio tirou de Roma o monopólio das Escrituras, consideradas como a revelação divina, mas a livre interpretação acabou por abrir o caminho ao racionalismo, ao Iluminismo e ao laicismo.
Por Rui Martins, de Genebra:
Nesta terça-feira, 31 de outubro, o mundo protestante, cerca de 800 milhões de praticantes, comemora os 500 anos da Reforma, tomando como ponto de partida as 95 Teses, que um monge agostiniano, de apenas 34 anos, Martinho Lutero, colocou nas portas da igreja de Wittemberg, Alemanha, denunciando o comércio da venda de indulgências. Foi um gesto de extraordinária coragem, pois acabou se transformando num confronto com o Papa Leão X, numa época em que as fogueiras da Inquisição ainda estavam acesas.
A Reforma não causou só o cisma que quebrou a unidade da Igreja Católica. Na verdade, Lutero nunca imaginaria que sua revolta contra a comercialização da salvação pelas indulgências assumiria a importância de um confronto político contra o Papado. No máximo, esperava uma pequena reforma dentro da Igreja, proibindo o negócio das indulgências e uma discussão sobre a salvação unicamente pela fé.
Mas ao morrer, 29 anos depois, pôde constatar a propagação de suas ideias, de nada adiantando ter sido excomungado, pois Lutero queimou em praça pública a bula da excomunhão. A reação de Roma foi o concílio de Trento com a Contrarreforma e a criação da Companhia de Jesus, pelo jesuíta Inácio de Loiola. Houve mesmo perseguições e massacres, como a Noite de São Bartolomeu, na França, e a Guerra dos Trinta Anos, na Alemanha.
Nessa altura, a Reforma reunia movimentos diversos liderados por outros teólogos como Calvino, Farel, Zwinglio, mantendo as oposições básicas à Igreja Católica mas com ligeiras diferenças. Era a primeira consequência da livre interpretação das Escrituras, defendida por Lutero, e da divulgação da Bíblia graças às prensas de Gutenberg.
Quinhentos anos depois, a Reforma foi a detonadora junto com a Renascença e a tipografia de Gutemberg, de um movimento mais vasto que, a princípio tirou de Roma o monopólio das Escrituras, consideradas como a revelação divina, mas a livre interpretação acabou por abrir o caminho ao racionalismo, ao Iluminismo e ao laicismo.
Por isso, nesta terça-feira, não são só os protestantes que comemoram, mas todos que, mesmo ateus, são os herdeiros do movimento que levaria, com o passar dos séculos, à liberdade de expressão e ao desenvolvimento da cultura em todo mundo ocidental.
A Reforma foi muito além da religião que, neste começo de milênio, como previa Malraux, tenta retomar o controle da liberdade de pensar, num retorno ao fundamentalismo. O surgimento no Brasil do evangelismo vindos dos Estados Unidos, é bem amostra desse retrocesso cultural com a revalorização dos velhos tabus, a condenação das conquistas laicas, como divórcio, aborto, homossexualismo, e a tentativa de se apossar do poder político para censurar o ensino, a cultura, agora nos museus, mas logo nos teatros, nos livros e cinema.
Rui Martins, jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.
Editor do Direto da Redação.