Na última tarde do ano, chuvosa, as ruas do Rio pareciam mais inseguras do que normalmente aparentam ser. Há, normalmente, no olhar do carioca, aquela paz que a Cidade Maravilhosa traduz como o seu principal estado de espírito. Mas, na véspera de 2007, a nuvem que escondeu o sol do verão declarado, aguardado, sonhado por milhões de brasileiros, estrangeiros e turistas, guardou também a tranqüilidade que se esperava no início do ano ímpar que chega.
Não é de se estranhar: Vinte mortos e outro tanto de feridos, vítimas de uma seqüência de ataques vís, patrocinada por donos dos morros, das bocas - e de alguns endereços elegantes também -, isso é de deixar ressabiado qualquer cidadão, de Paris a Bagdá. Quanto mais do Rio de Janeiro.
O ano, no campo econômico, começa com a bujarrona estufada, seja de otimismo com alguma (importante) mudança no sistema, para os otimistas que sonham ainda com a Reforma Agrária, Urbana e tantas outras metas idílicas, ou - no caso dos banqueiros - da mais pura felicidade por nunca, na história da agiotagem no país, terem faturado tanto. De um jeito, ou de outro, 2007 surge como um tempo de redenção para um país aflito pela pasmaceira, entorpecido por tamanhas promessas, tantas delas irrealizáveis.
Na área social, as mezenas também se enchem com a lufada de esperança somente possível com três pratos de comida por dia, algum estudo para as crianças e uma miséria no bolso. Esse é o Eldorado daqueles abandonados à própria sorte, nos cantos longínquos de Brasil, lembrados somente na hora do voto, que não faz muito tempo. Eles têm um reveillon, apesar das incertezas da vida, mais calmo do que leblonianos, ipanemenses e outros tantos moradores da classe média carioca.
Os habitantes daqui estão impressionados com as armas ostentadas por bandidos que vendem drogas (esses comumente chamados de traficantes) ou aqueles traficam segurança (um tipo de milícia armada, antigamente conhecida como Mineira ou Esquadrão da Morte). O ricos do Rio, diferentemente dos pobres dos sertões, patrocinam a ambos. Tratam de empoar os narizes pequeno-burgueses com a droga vendida por aqueles traficantes que os mercenários combatem, com o soldo garantido por dinheiro arrecadado de quem não tem onde cair morto.
Trata-se de uma piada às avessas: Quem paga aos milicianos são os mesmos que suaram a camisa para que os endinheirados, de posse da mais-valia, possam entupir as napas e sustentar os traficantes e dar seqüência à trama sórdida que engolfa uma cidade. Aliás, uma cidade não. A Cidade. A mais bela, a mais querida do mundo para quem a ama.
Enquanto os carvoeiros, lavradores, roceiros e caipiras em geral foram dormir, na última noite de 2006, com as suas vidas severinas cansadas, em um travesseiro de palha, babaram os dândis cariocas em seus lençóis de algodão egípcio, com o pavor a lhes encharcar os pesadelos. Estes, geralmente fúteis e orgulhosos, na realidade pouco importam. Pensemos nas vítimas de tanta fome por loucura, alimentada pela coca que jorra dos bolsos dos aviõezinhos que sobem e descem as favelas, direto para as festas desse reveillon do medo que paira sobre Rio. Temamos, sim, mas pelas vidas de quem precisa trabalhar, pegar um ônibus, sobreviver.
Como se vivêssemos na Faixa de Gaza - não se sabe de onde vem a bala - o Rio chega a 2007 em pleno cerco. Não se presume um assédio militar, do tipo clássico, com um monte de gente do lado de fora, com a faca entre os dentes, querendo o fígado de quem está do lado de dentro de algum lugar. Mas um campo minado, uma área conflagrada, cheia de loucos sem quartel, interessados apenas em disseminar o terror e a morte.
Se levantarem um muro em volta do Rio, vira um manicômio.
Se cobrirem com uma lona, é o próprio circo dos horrores.
Gilberto de Souza é editor-chefe do Correio do Brasil.