No Brasil, a Modernidade orientou o processo de urbanização e industrialização; experimentados aceleradamente a partir da segunda metade do século XX. Mais especialmente, com a passagem do projeto de desenvolvimento nacionalista.
Por Maria Fernanda Arruda - do Rio de Janeiro
A vitória notável dos Estados Unidos, na Segunda Guerra, não aconteceu nos campos de batalha, mas na arena política. Monopolizando os méritos de uma vitória que esmagava o fantasma do nazifascismo e criando em seguida a dicotomia que tomou a forma de "guerra fria", os Estados Unidos logo substituíram a ideologia da Paz pela da Modernidade. Fruto do progresso das ciências aplicadas à produção de bens de consumo, o Moderno foi transformado pelos expedientes criados pelo Marketing no american way of life.
Isso é, no conforto que se oferecia aos bem-sucedidos na vida, a casa-lar sustentada nas facilidades dos eletrodomésticos, o automóvel, a televisão; os valores humanos expostos como mercadorias de vitrine. Foi quando as ciências modernas renunciaram à vontade de especulação filosófica. As ciências naturais, produtoras de um saber tecnicamente útil, transformaram-se em uma forma de reflexão da praxis e na primeira força produtiva.
No Brasil, a Modernidade orientou o processo de urbanização e industrialização; experimentados aceleradamente a partir da segunda metade do século XX. Mais especialmente, com a passagem do projeto de desenvolvimento nacionalista, calcado no modelo criado pela CEPAL. Sustentado pelo governo Vargas, pela proposta do desenvolvimentismo internacionalizante dos anos de JK; quando a retórica e as vontades e as ações de Roberto Campos, tomando a forma concreta do "Plano de Metas", puseram fim ao sonho idealizado pelos teóricos do ISEB; o ideário de Hélio Jaguaribe.
Governo JK
A modernização da economia brasileira, realmente, não produziu uma burguesia nacional; disposta a associar-se a outros segmentos dinâmicos da sociedade. Especialmente ao proletariado, e que assumisse o comando desse processo.
O Brasil Moderno foi criação das corporações internacionais; tornando possível a sustentação do anacronismo da "casa grande”. Esta, encastelada simbolicamente na pirâmide que a FIESP, ergueu-se na Avenida Paulista. Terminado o governo JK, os anos que se sucederam, até abril de 1964, foram o tempo necessário para que se preparasse o golpe desejado desde 1950.
Escreveu-se a crônica da morte anunciada, tendo como pano de fundo as falas desencontradas das elites que, em pânico, queriam silenciar o povo; e a dos que acreditaram ainda na possibilidade de um futuro, a partir de reformas de base. Em 1º de abril de 1964 triunfou o projeto desenvolvimentista modernista. Agora, sem mais a figura de seu criador, comandado por técnicos-economistas; notadamente Delfim Neto, fazendo-se o milagre brasileiro, destinado ao “Brasil – ame-o ou deixe-o.
Margens de manobra
A ditadura encerrou o ciclo de governantes militares, depois o regime ter sido mostrado em sua fraqueza pelos movimentos grevistas que aconteceram a partir de 1978. E depois de ter sido mostrado em seu anacronismo pelos manifestos dos empresários. O primeiro deles de 1978. Mas foi a partir de 1990 que o modelo de modernidade periférica passou a ser executado coerente e consistente; retomando-se o que os anos de desenvolvimentismo modernizante tinham preparado.
Não houve, com os oito anos de governo FHC, um ato de traição, com a submissão da soberania nacional ao sistema financeiro internacional. Mas o continuísmo conservador que foi e é a marca da cultura política brasileira. Quando, com a ascensão ao Poder do Partido dos Trabalhadores, com Luis Inácio Lula da Silva, não se rompeu com esse passado. O Presidente dos Trabalhadores, ele mesmo um trabalhador, chegou à Presidência da República, dispondo de margens de manobra muito estreitas. Mal coube a sua política assistencialista.
Para eleger-se, Lula assumiu a fantasia talhada pelos seus assessores de marketing, abandonou os ares de fazedor de greves, passou a sorrir e a dialogar com palavras doces. Foi eleito, recusando uma Constituição que foi feita para que o cidadão brasileiro usufruísse de uma “democracia consentida”; emendada, para que se reduzisse drasticamente o tamanho do Estado.
Cultura de massas
Como se obteve a aceitação e adesão do povo brasileiro, do "colégio dos cidadãos", consolidando-se a prática dessa "democracia consentida"? Como foram feitas as opções? Como houve o convencimento desse povo, que ratificou a política que serve às elites?
Isso se fez e se faz através do uso competente de mecanismos que permitem a criação de uma cultura; um processo que poderá ser compreendido a partir da ideia de hegemonia, tal como ela está trabalhada em Gramsci. Quando a atividade política, o exercício do poder, não se impõe mais pela força policial e militar das elites, mas passa a exigir a persuasão, o que vem a acontecer com a instauração de regimes mais ou menos democráticos, esses antigos donos do poder, essas elites tratam de assegurar a sua hegemonia com a formulação e imposição de uma cultura de massas, uma construção ideológica.
A partir de 1990, inaugurado o discurso da modernidade, a inteligência nacional tornou-se de vez desnecessária e mesmo inconveniente. Durante a ditadura, ela foi necessária, como voz acusadora; por isso mesmo, censurada. Mas, no mundo novo da democracia consentida, não sendo mais necessária, ela foi deixando de ser ouvida. E, em passo adiante, a ser substituída por uma ideologia nova.
Linha da pobreza
A modernidade criou a sua ideologia através dos computadores; para isto tendo necessidade de hardware, software, programadores, analistas e digitadores; mas não de intelectuais, inúteis diante do computador. Tanto quanto a própria cultura, substituída pela informação. Com isso, para a camada culta, ou melhor, para a parcela que se dedica à produção escrita, perdeu-se a sensação de que ela tinha uma missão a cumprir na sociedade. Tendo sido, até então, porta-voz de uma classe social, viu-se descartada por ela; passando a sentir-se completamente isolada entre as camadas massificadas e a burguesia que não precisava mais dela.
Nesse mundo da modernidade periférica, as classes médias desempenham o papel do equívoco e da inconsequência, convivendo e habituando-se aos confortos permitidos pelo progresso, o que só lhes é permitido pela fuga sistemática da confrontação com a realidade. Elas optam por conviver com uma das mais lastimáveis concentrações de renda do mundo;, com milhões de cidadãos postos abaixo da linha da pobreza. Com uma economia que se desindustrializou, com a impunidade da corrupção.
Classes médias que assumiram as delícias do hedonismo individualista, permitindo a criação da monstruosidade que pode ter o nome de fascismo do consumo. Coerentes com a sua posição, incorporaram toda a ideologia da globalização modernizante. Aquilo que foi sonhado desde a segunda metade dos anos 50, no século passado, quando se começou a entender que era imprescindível “aprender inglês”; glorificando-se Brasília, a cidade do futuro. E, mais adiante, acreditando-se no Brasil grande, do “ame-o ou deixe-o”, surge como sonho dourado que a grande imprensa alimenta diária e semanalmente. As classes médias brasileiras definitivamente não têm livros. Assistem ao “jornal da TV” e assinam a revista Veja.
Desodorantes
Mas, e o povo, onde esteve e está o povo? No Brasil, a estratificação social põe a maioria de sua população nessa categoria. Essa gente comum, que sobrevive mal; excluída social e economicamente, vivendo nas periferias lastimáveis das grandes cidades, que as gentes do campo vieram inchar. O discurso da modernidade, quando se dirige às classes populares, utiliza-se de recursos que são os mesmos empregados para sustentar a venda de produtos de consumo de massa – alimentos e bebidas, cremes de beleza, desodorantes e sabonetes – sendo, portanto, um discurso empobrecedor em si mesmo.
Mas que, propositadamente, não é retórico. Tenta a criação de uma intimidade artificial que permitiria a “sugestão inteligente e amiga”. A campanha eleitoral de 2014 fez-se como exemplo gritante disso. A morte acidental de um candidato foi o ponto de partida, capaz de transformar a vitória prevista de Dilma Rousseff, já em primeiro turno em disputa acirrada. Graças à "intimidade" criada artificialmente pelo ambiente de uma câmara mortuária.
Maria Fernanda Arruda é escritora e colunista do Correio do Brasil.