Vivemos um marco histórico, um presidente da República foi condenado por tentar derrubar a democracia. Transformar esse fato em memória coletiva é tarefa também da escola.
Por Rosana Alves – de São Paulo
“A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história da luta de classes.” — Marx e Engels, Manifesto Comunista (1848).
A declaração, escrita no século XIX, ainda fala muito sobre o Brasil em setembro de 2025. O julgamento de Jair Bolsonaro e seus apoiadores não era só um caso legal, mas sim um marco inédito na história. Pela primeira vez, um presidente da República encarou o julgamento por tentar acabar com a democracia. O Brasil enfrentou o perigo genuíno de uma ditadura militar, como em 1964. Só que, desta vez, a coisa mudou, em vez da vitória dos conspiradores, houve a condenação.

É crucial entender a vastidão desse evento. Ele não é apenas um pormenor da nossa história política; é um marco histórico. Em 1964, os militares assumiram o poder, e instalaram uma ditadura de 21 anos. Em 2025, diante de nova tentativa golpista, a democracia resistiu, e os conspiradores foram julgados. Isso precisa ser escrito na memória coletiva como um divisor de águas.
No entanto, sabemos que a disputa não termina no tribunal. A extrema-direita opera historicamente pelo revisionismo, transformou o golpe em “Revolução de 64”, relativizou crimes de tortura, perseguiu professores e tentou silenciar currículos. Hoje, repete a fórmula ao dizer que não houve golpe, mas “crise institucional”, ou que Bolsonaro é vítima de “perseguição”.
“Cívico-militar”
Me parece perigoso, por isso, adotar expressões como “cívico-militar” para nos referirmos ao golpe de 1964. É inegável que setores civis, empresariado, parte da Igreja, a grande mídia, apoiaram a ruptura. Mas o protagonismo e a execução couberam às Forças Armadas, em estreita articulação com o imperialismo norte-americano. O termo “cívico-militar” dilui responsabilidades, confunde sujeitos históricos e alimenta a narrativa de legitimação da ditadura.
Aqui chegamos a uma questão decisiva: a verdade histórica. Vivemos um tempo em que se disseminou a ideia de que tudo é narrativa, de que não há fatos, apenas versões. Essa noção, impulsionada por correntes pós-modernas e apropriada pela extrema-direita, corrói a consciência histórica. Mas existe, sim, verdade. Houve um golpe militar em 1964, não uma revolução. Houve uma tentativa de golpe em 2023/2024, e em 2025 houve o julgamento de seus articuladores, não uma mera “crise institucional”.
Tratar esses acontecimentos como fatos históricos não significa negar a complexidade ou as contradições, mas afirmar que há uma realidade objetiva que não pode ser relativizada ao sabor de interesses de classe. A história não é um campo neutro de narrativas, é uma disputa pela verdade. E quando a mentira se organiza, seja chamando ditadura de “revolução”, seja pintando golpistas como perseguidos, o silêncio da escola se torna cumplicidade.
É nesse ponto que entra a função social da educação. A escola deve garantir às novas gerações os instrumentos para compreender a realidade e transformá-la. Isso inclui inscrever nos currículos e nos livros didáticos o julgamento de Bolsonaro como marco da defesa da democracia brasileira. Não como rodapé, mas como lição histórica e pedagógica. A escola deve formar consciência crítica, mostrar às novas gerações que a democracia não é dada, mas conquistada e defendida.
Clareza da envergadura
Estamos, com razão, embalados, talvez até em êxtase, diante desse resultado histórico. É justo, porque se trata de uma grande conquista, uma vitória sem precedentes da democracia brasileira. Mas exatamente por isso precisamos ter clareza da envergadura do que aconteceu. Não basta comemorar, é nossa responsabilidade dar consequências a esse julgamento e sustentar sua memória, para que não seja diluído ou relativizado.
Se não fizermos isso, corremos o risco de ver esse episódio ser apagado ou distorcido, como ocorreu com 1964. Daqui a algumas décadas, podem tentar convencer nossos filhos e netos de que o julgamento não passou de disputa política ou de que os condenados eram inocentes. Essa é a lógica do revisionismo, desfigurar a verdade para legitimar a barbárie.
O julgamento dos golpistas é, portanto, uma vitória da luta de classes em favor da democracia. Mas a luta para que essa vitória se torne memória coletiva ainda está em aberto. A extrema-direita disputa a linguagem, o currículo, a narrativa. Cabe à escola disputar a verdade. Só assim a lição desse setembro de 2025 cumprirá seu papel histórico e pedagógico: ensinar que a democracia só sobrevive quando é defendida com memória, com organização e com luta.
Rosana Alves, é professora, historiadora e pedagoga. Atualmente coordenadora pedagógica na rede Municipal de Ensino de São Paulo. Mestra em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Membro da direção Municipal do PCdoB São Paulo.
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