Estudo liderado por cientistas brasileiros aponta que substituição da vegetação nativa por pastos e plantações levou a aumento da temperatura e deixou o clima mais seco. Devastação é prejudicial ao agronegócio.
Por Redação, com DW - de Brasília
Nos últimos 15 anos, o desmatamento no Cerrado fez com que a temperatura média em partes do bioma subisse até 3,5 °C. Além de mais quente, a região, que abrange nove Estados brasileiros e o Distrito Federal, ficou mais seca. Parte da água que retorna para a atmosfera por evaporação da superfície de rios, lagos, solo e transpiração das plantas, a chamada evapotranspiração, desapareceu. A combinação desses efeitos tem um resultado preocupante: redução das chuvas.
Nos últimos 15 anos, o desmatamento no Cerrado fez com que a temperatura média em partes do bioma subisse até 3,5 °C
Os dados fazem parte de um estudo liderado por pesquisadores brasileiros que investigou como a devastação do Cerrado influencia o clima regional e a disponibilidade de água para a agricultura, publicado nesta quinta-feira na revista Global Change Biology.
O Cerrado, o segundo maior bioma do país depois da Floresta Amazônica, já perdeu 46% de sua cobertura original. Ele é considerado um dos ecossistemas com maior biodiversidade do mundo.
É a primeira vez que uma pesquisa avalia os impactos sobre os diferentes tipos de vegetação desse bioma, composto por um mosaico de formações campestres que se assemelham a um gramado natural com poucas árvores; por savanas, que misturam arbustos e árvores; e formações florestais, que têm árvores mais altas e densas.
– Os resultados surpreenderam ao indicar os impactos significativos não somente da conversão de formações florestais, mas também das formações savânicas e campestres, que recebem menos atenção quanto à sua conservação e relevância para a estabilidade climática – afirma Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e uma das autoras do estudo, em entrevista à agência alemã de notícias Deutsche Welle (DW).
A análise indicou que as regiões no Cerrado que abrigavam florestas e deram lugar a plantações e pastos sofreram os danos mais críticos. Em cidades do oeste baiano e do norte de Minas Gerais, onde a temperatura já é alta, a média saltou de 31,8 °C para 33,9 °C no período avaliado. Ao mesmo tempo, a queda média anual do volume de água bombeada para a atmosfera foi de até 44%.
Importância biológica
Para chegar ao resultado, os pesquisadores combinaram dados obtidos pelo satélite MODIS, informações sobre o uso da terra e mapas de cobertura vegetal dos anos de 2006 a 2019.
A substituição das savanas por plantações ou pasto levou a um aumento médio de 1,9 °C em regiões do Cerrado e queda de até 27% na umidade média anual. No caso das formações campestres, a alta no termômetro foi de até 0,4 °C e a queda na evapotranspiração média anual foi de 15%.
– Quando comparamos as diferentes formações vegetais do Cerrado, os impactos são maiores quando convertemos florestas em pastos e plantações. No entanto, a conversão de savanas é maior em termos de área e, por isso, também tem um peso significativo nos resultados – ressalta Bustamante.
Análises apontam que a maior parte da cobertura original do Cerrado, 57%, era de savana. Em 2019, último ano a ser considerado no estudo, essa vegetação foi a mais desmatada no bioma, correspondendo a 61% do total medido, seguido por formações florestais (20%) e campestre (19%). Naquele ano, o desmatamento registrado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi de 6,5 mil km².
O Cerrado abriga mais de 12 mil espécies de plantas e mais de mil espécies de vertebrados, muito dos quais só são encontrados na região. Ele também é berço de importantes bacias hidrográficas, como a do São Francisco, Tocantins-Araguaia e do Paraná.
Celeiro mundial
Além dessa importância biológica, o bioma concentra grande parte do agronegócio brasileiro. Cerca de 12% da soja mundial é plantada na região, e 10% de toda a carne bovina exportada no mundo vem dali.
Essa pujança vista na agricultura, por outro lado, fica comprometida à medida que a vegetação desaparece. "As transformações em larga escala no Cerrado começam a alterar condições que são determinantes para o sucesso da agricultura, como a temperatura superficial e o retorno de umidade para a atmosfera", comenta Bustamante, lembrando que os cultivos podem sofrer quebras com a seca.
Os Estados que concentram a fronteira do desmatamento, a zona chamada de Matopiba, que engloba Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, devem sofrer mudanças ainda maiores com dias mais quentes e secos. Vista como local de expansão em potencial para cultivos como o da soja, Matopiba também contém a maior área remanescente de Cerrado.
Até 2019, cerca de 916 mil km² em vegetação nativa foram devastados para dar lugar a pastos (31%), soja (9%), cana-de-açúcar (2%) e outros cultivos.
Estima-se que, do Cerrado que ainda resta, grande parte (80%) tenha potencial para plantio de soja e cana-de-açúcar, culturas que devem crescer consideravelmente nas próximas décadas, segundo projeções da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês).
Projeções futuras e baixa proteção
Além de medir o impacto do desmatamento entre 2006 e 2019 sobre a temperatura e umidade, o estudo projeta o impacto sobre o bioma de três possíveis cenários futuros. No pior deles, em que o corte da mata poderia chegar a 63,5 mil km² até 2050, a queda anual na evapotranspiração seria de 84 mm, com aumento de temperatura média de 0,7 °C para todo o bioma.
Segundo a projeção mais otimista, em que a devastação é cessada e são reflorestados 52 mil km² de mata cortada ilegalmente, mais água circularia no sistema (aumento de 4 mm), e a temperatura média seria reduzida em 0,04 °C em relação ao medido em 2019.
"Ainda assim, isso seria insuficiente para contrabalancear as grandes transformações climáticas que já ocorreram", aponta o estudo. "Pesquisas sugerem que métodos promissores poderiam ajudar a restaurar, a um custo relativamente baixo, o mosaico que forma o Cerrado. Por outro lado, pode demorar décadas para que a vegetação seja recuperada com os atributos necessários", dizem os autores.
Para Bustamante, o atual cenário internacional aumenta a pressão sobre o bioma. "As oscilações do dólar e dos mercados internacionais têm um impacto sobre a agricultura no Cerrado, que está orientada para a produção de commodities", argumenta.
Uma das maiores preocupações está na pequena área destinada à conservação: cerca de 11% de todo o bioma estão protegidos em unidades de conservação e territórios indígenas. Percentual bem abaixo dos 46% destinados à proteção da Floresta Amazônica, por exemplo.
– Existem pelo menos 28 milhões de hectares de áreas nativas no Cerrado que não têm proteção legal, distribuídas principalmente no norte do bioma. Para evitar um agravamento da crise climática, é preciso ter incentivos para conservar nestas áreas e avançar na política de restauração da vegetação nos locais já degradados ou desmatados ilegalmente – alerta Bustamante.