Desde 2007, cada vez que se reúnem dignitários do Brasil e da Itália, de qualquer nível, sempre aparece o eterno assunto de Cesare Battisti, a despeito do motivo formal do encontro.
Por Carlos Lungarzo, de Santos:
Assim aconteceu também na reunião dos chanceleres de ambos os países em Roma, no palácio da Farnesina, no dia 13/11, quando os temas em pauta eram a economia bilateral, os convênios sobre ciência e cultura (sic) e as “preocupações” pela democracia na Venezuela. Mas, comparando com os anos de 2007 a 2011, quando brotavam da capital da Itália os insultos, desprezos e agressões contra os juristas, os políticos honestos e até contra o povo brasileiro (em especial, as mulheres), houve uma expressiva diferença de comportamento.
O chanceler Alfano foi discreto e colocou sua ênfase na “máxima atenção” com a que a Itália segue o processo judicial no Brasil, sem qualquer menção “repreensiva” a seus serviçais de ultramar. Também, o lado brasileiro reafirmou o interesse de continuar com a cooperação jurídica internacional (o que significa o tráfico de inimigos entre ambos os países).
Segundo Alfano, a magistratura italiana estuda as possibilidades de "constituir-se em juízo" em representação do Estado e permanecer nessa condição durante todo o processo. O chanceler brasileiro teve a gentileza de sugerir uma forma de cooperação, a de amigo da corte (amicus curiae), mas nenhum dos diversos despachos de imprensa a meu alcance informam se essa sugestão preencheria os sonhos de justiça dos peninsulares.
Seja como for, muitos de nós podemos ter a dúvida:
Em que sentido a Itália seria parte num processo de reclamação cuja finalidade é julgar a capacidade do STF de reforçar uma ação sua onde o Estado Italiano é perdedor, e onde, desta vez, o país não aparece com nenhuma função conhecida ou juridicamente aceita?
Nova Extradição
Vejamos qual foi a função da Itália nesta nova fase do Caso Battisti, embora ninguém saiba todos os detalhes. Numa data desconhecida, usando um método também desconhecido, a embaixada italiana pediu ao MJ brasileiro um jeitinho para embrulhar e entregar o ex-extraditando.
Diante da qualificação ética e social de ambos os governos, é difícil conjecturar se o pedido esteve baseado apenas na confiança e no futuro agradecimento (como quando Amerigo Bonasera pede a Don Corleone que faça torturar os estupradores de sua filha, e devolve o favor organizando o velório de Santino Corleone), ou através de algo mais consistente, que, de qualquer forma, deve ter sido prometido ou realizado em forma de hundi, também conhecido como hawala, que é uma forma indetectável de mostrar “gratidão”.
Mas, vamos devagar; preconceito é ruim.
No 25/09/2017, o sisudo jornal O Globo publicou uma notícia bomba: a Itália tinha apresentado pedido (não diz em que forma) para que o Brasil modificasse a decisão de Lula de 2010 recusando a extradição, e voltasse tudo a zero, agora com a decisão do presidente golpista. O prestigioso cotidiano atribui ao chanceler e ao ministro da justiça a participação num projeto de nova extradição, embora Itamaraty tenha, segundo parece, desmentido sua participação numa conversa privada com jornalistas. A própria notícia diz que a Itália tentava manter a manobra em sigilo, e que a divulgação pública causou grande descontento.
Segundo O Globo, o processo foi incubado com cuidado, pois começou com um pedido do embaixador italiano ao jurista-policial que era ministro da justiça do governo golpista e, depois, a seu sucessor, o conhecido inventor do relatório da CPI do mensalão em 2005.
Então a bomba explodiu nas mãos do atual ministro que, segundo as colunas sociais, é especialista em direito eleitoral. A partir daí, o governo espalhou um conjunto de boatos contraditórios. Primeiro, que o presidente estava indeciso; depois, que ele teria tirado de Battisti a condição de “refugiado” (que Cesare não tinha desde 2009), e assim em diante.
Após o frustrado sequestro de 04/05 de outubro em Corumbá, e da radical rejeição da prisão preventiva pelo Tribunal Federal da 3ª Região, parece que os conspiradores ficaram enfraquecidos. O fator central para o aumento frustação foi o HC preventivo dado pelo ministro Fux e, mais ainda, a escolha de apresentar o caso da extradição na forma de uma Reclamação Constitucional, o que foi um tiro certeiro na raiz do problema.
Então, agora, em que qualidade a Itália pensa atuar como parte?
As Partes em Jogo
Observando com olhar de leigo, ouso imaginar que uma Reclamação pode ser vista como um evento complexo, que envolve o próprio STF, cuja autoridade teria sido ameaçada, e as pessoas em litígio cuja situação tinha sido resolvida pela decisão da Corte desrespeitada. Afortunadamente, o próprio STF nos brinda informação clara sobre este instrumento na página:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=271852
Se entendi bem, o caso atual parece estar contido na segunda das três hipóteses apresentadas nessa página. O grifado é meu:
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garantir a autoridade das decisões do STF, ou seja, quando decisões monocráticas ou colegiadas do STF são desrespeitadas ou descumpridas por autoridades judiciárias ou administrativas.
Através da RCL, o Supremo preserva sua competência e garante sua autoridade. Neste caso concreto, sua competência consistiu em aprovar a decisão de Lula, que em 31/12/2010 recusou o requerimento da Itália. O que o STF decidiu, ao rejeitar a Reclamação Italiana foi exercer sua competência para julgar se o critério presidencial era ou não justo. E decidiu, por 6 votos a 3, que sim, era justo.
A robusta vantagem de votos do SIM deve ainda ser mais apreciada, quando se pensa que os 3 juízes atuantes como procuradores informais da Itália fizeram o impossível para sabotar a votação. O juiz Peluso chegou a sugerir que a concessão do alvará de soltura para Battisti devia ser considerado uma espécie de gentileza sua.
Se nossa apreciação for correta, no caso atual a situação seria:
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O STF atua para garantir a autoridade que já foi exercida no 08/06/2011.
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Battisti foi o jurisdicionado, cujo direito foi reconhecido pela decisão.
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O presidente do Brasil, e os ministros evolvidos (segundo solicitou o advogado Igor ao Supremo) passam a ser as partes que desrespeitaram a autoridade do STF, invadindo de maneira abrupta a decisão da corte. Não sei estimar se o caráter clandestino da manobra agrava, do ponto de vista judicial, a ilegalidade da intromissão, mas, sem dúvida, mostra a índole dos conspiradores.
Esta não é a primeira vez que se desrespeita a decisão de 2011. Uma juíza federal chamada Adverci de Abreu fabricou um sequestro judicial/policial em 12/03/2015. Ela deveria ser arrolada como parta da equipe “desrespeitadora”.
Bom, mas agora, onde fica a parte da Itália nesta lide?
Em 2007, embora tenha acontecido com notória demora, a Itália aceitou entregar um requerimento formal de extradição, que, do ponto de vista Brasileiro, passou a ser a extradição passiva 1085. É verdade que, no começo, a Itália queria pegar o “terrorista” e levar de volta no primeiro avião, mas, finalmente, por causa da séria exigência das autoridades brasileiras, que concedeu 40 dias de prazo, acabou entregando o documento. O fez três dias úteis depois de vencido o prazo, para não perder a chance de mostrar sua arrogância, mas fez. (Uf! Imperialismo frustrado é fogo!)
Também entregou uma parte da papelada, o que já foi uma grande deferência. Nem mesmo a orgulhosa França foi favorecida pela Itália com o dossiê completo de Battisti, que (caso não tenha sido destruído) continua sendo um mistério. Um dia antes do fim de prazo, os italianos entregaram aos franceses 800 páginas de documentos, dos quais quase todos eram pura divagação.
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Então, seja como for, a Itália era em 2007 uma parte oficial no processo! Era a parte requerente.
Que Peluso tenha concedido a Itália durante os anos 2008 e 2009 os poderes de agir como se fosse mais um juiz, e que cumprisse servilmente todas as condições impostas pela península, em coisas tão específicas como conceder ou negar HC, não quer dizer nada especial. Só prova que o julgamento era uma fraude numa proporção modesta do 56% (5 contra 4). Porém, esta fraude não elimina o fato de que a Itália fosse um legítimo requerente (embora não fosse um legítimo tribunal).
Mas, esse papel não existe no atual processo de RCL.
Aqui, a única figura oficial foi o governo, representando o estado brasileiro, que começou a organizar uma entrega ilegal, abortada por excesso de precipitação e ansiedade dos linchadores. (Deveriam ter escolhido uma polícia menos exagerada e um avião militar mais disponível.)
Observemos:
Não há um chefe de Estado assumindo seu direito de entregar o extraditando, porque o direito do Estado de entregar Battisti acabou no momento em que o Supremo reconheceu o ato de Lula de recusá-la. A recusa foi reconhecida como ato jurídico perfeito e já na manhã do dia 9 de junho era coisa julgada. Portanto, Battisti tem direito adquirido, que é o direito de viver livremente no Brasil, e não pode ser trocado pelo outro direito, o que Temer lhe oferece, de ser “suicidado” em Regina Coeli, Rebibbia ou lugar equivalente após um ou dois anos de tortura.
À margem das diversas considerações de legitimidade, bom senso e direitos humanos, que são evidentes e poderosas, estão as proibições formais, como a súmula 473, e a impossibilidade de modificar o decreto após cinco anos.
Se o STF julgar a reclamação deverá decidir se garante ou não o valor de sua autoridade. Se decidir que não, esta seria uma contradição enorme, que talvez alguns juízes assumam por interesses de outra espécie, mas que significa uma afronta a si mesmo, algo assim como uma “selfie masoquista”.
Então, fica claro que a Itália não é, desta vez, a autoridade oficialmente requerente, pois o rito de uma EXT implica que, após o requerimento ao MJ, este deve passar os autos ao STF, como já aconteceu mais de 1400 vezes.
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Aqui não houve um requerimento que chegasse ao STF. Se a Corte entrou na lide foi porque a defesa de Battisti reclamou do risco de um grave abuso.
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Além disso, cabe a dúvida sobre a existência de qualquer requerimento, que não tenha sido com base na “omertà” (o silêncio siciliano). Então, mesmo se a Itália tirar agora um requerimento da cartola com a data “retocada”, isso não serviria como requerimento oficial
(Cuidado, amigos: o truque de alterar datas deu certo com as procurações atribuídas a Battisti, mas a repetição do jogo pode não funcionar!)
O que a defesa de Battisti pretende é que Itália mostre a documentação com a qual apoiou seu pedido ao governo (não a Corte), caso esse papel exista. Se aparecer algum papel, ele não legitimará o pedido de extradição porque ele deveria ter sido encaminhado ao STF. (Aí haveria outro problema de bis in idem, mas vamos deixar barato para nossos amigos de ultramar). Porém, essa petição reforçaria ainda mais a convicção de que todo este processo do governo e da embaixada italiana não é mais que uma tramoia.
Aliás, abusando do senso comum, suponho que o relator da RCL deverá ser sempre aquele que foi autor do acórdão que formalizou a decisão que agora quer ser desrespeitada. Não cabe à Itália, desta vez, a consolação de ter um relator subserviente, ou dois, como aconteceu no lapso 2007-2011.
O Amigo da Corte
A regulação da condição de amigo da corte (amicus curiae) é imprecisa, mas existem pelo menos algumas normas de bom senso que sempre regraram seu uso no Brasil. Quem atua como AC pode ter (e quase sempre teve) interesse específico numa parte do pleito, porém, não é um amigo dessa parte, mas um amigo do tribunal em seu conjunto. Ou seja, ele deve atuar com equilíbrio, em procura da melhor solução para o benefício da sociedade.
Ora, isto coloca, de cara, dois problemas difíceis.
(1º) A Itália pretende presentear o Cesare com dois prisões perpétuas, uma nesta vida e outra no inferno. Cesare quer ficar no país, usufruindo da liberdade que, apesar de provocações e agressões, teve até agora, curtindo da família, os amigos e a vida cultural a que ele contribui já com cinco livros em vernáculo. Alguém consegue imaginar duas situações mais opostas? Como vai ser possível o equilíbrio entre elas?
(2º) Qual seria o benefício social da extradição de Battisti? Será que, a pesar do ódio difundido por comunicadores do esgoto, há alguém que tem medo de viver num país onde Battisti poderia fazer denotar uma arma terrorista de enorme poder? Nosso povo sofre maus tratos e desinformação, mas não temos uma psicose coletiva desse tamanho. Vejamos a parte da Itália: o povo está sofrendo uma crescente pauperização, que o cínico ex-primeiro ministro quis legalizar com uma nova Constituição. Então, por que o povo se sentiria tão feliz com a satisfação de sede de sangue da máfia política que o governa? Lembremos que quase 60% da população votou contra a proposta de Renzi em 2016.
Por sinal, 9,6% dos seguidores de nossa página da Internet Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti são italianos, o que é significativo, tendo em conta que a linguagem majoritária dessa página é o português (ou o portunhol, mas não o italiano).
www.facebook.com/battistificanobrasil/insights/?section=navPeople
Aliás, há um consenso tradicional de que o amicus curiae deve oferecer critérios e informações relevantes para o sucesso do julgamento. Ora, tudo o que a Itália pode dizer é o que repetiu algumas centenas de vezes: Contar a história dos quatro assassinados, das vittime que o Estado leva em corteo a todos lados, desde manifestações de rua até o Corte da UE; repetir sempre a falta de pentimento do perigoso monstro escondido nas selvas do trópico, e de seu desafio aos 40 anos de dor da Itália evidenciado ao tomar uma cerveja em público.
Será que uma instituição que se preze está disposta a continuar a ouvir todas estas baboseiras? E, mesmo se isso acontecer, qual seria a consequência?
Na primeira turma, os enviados da península só poderiam manipular uma pessoa, que talvez até tenha perdido o interesse na extradição quando a RCL seja julgada, o que não deve acontecer antes de dois ou três anos. Daí o interesse em colocar a questão no plenário, mesmo que sejam difícil que tenham aí mais de dois votos.
Então, cari amici, sejam gentis como corresponde semanticamente a esta nova administração do governo italiano (com trocadilho, é claro), e saciem nossa curiosidade. Mostrem o requerimento que vocês dizem ter feito.
Carlos Lungarzo, professor, jurista, escritor, autor do livro Os Cenários Ocultos do Caso Battisti
Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.